De Reritiba a Vitoria
O Apóstolo e Padroeiro do Brasil viveu no colégio de São Tiago no período em que foi superior dos jesuítas no Espírito Santo . O Colégio cuja capela guardou seu sepulcro também foi lugar de sua produção literária e palco de uma de suas peças teatrais mais importantes, tanto pela estrutura do texto quanto pelo tema da política e da justiça. Escrito em português e espanhol, para uma plateia de embaixadores, faz um registro do momento político pelo qual passava a capitania, o governo de Luísa Grimaldi, a quem apoiou como governante. Pela arte, Anchieta levou ao Palácio Anchieta a primeira governante do Espírito Santo.
Jovem espanhol, natural das Ilhas Canárias, nasceu em 19 de março de 1534, entrou para a Companhia de Jesus aos 17 anos, quando estudava em Portugal, na Universidade de Coimbra – no mesmo ano da fundação do Colégio de Santiago, em 1551. Acometido por uma enfermidade óssea, que o acompanhou por toda a vida, veio para o Brasil motivado pelas cartas dos primeiros jesuítas e pelo bom ar das novas terras. Apesar da enfermidade, desenvolveu grande trabalho e influência na formação do Brasil como nação de nações. Chegou a assumir a função de Provincial do Brasil, conviveu com os povos originários desta terra e se destacou em sua defesa. Aprendeu e redigiu uma gramática da língua mais falada na costa brasileira, o Tupi, e levou a língua e a cultura indígena para os mais elevados gêneros literários da época.
Foi superior dos jesuítas no Espírito Santo e reitor do Colégio de São Tiago da ilha de Vitória. Viveu os últimos anos de sua vida na aldeia de Reritiba, no litoral do Espírito Santo, a 90 km da capital capixaba, hoje município de Anchieta. Faleceu em seu quarto, ao lado da igreja que construiu e dedicou a Nossa Senhora da Assunção, onde hoje está o Santuário Nacional a ele dedicado. Foi sepultado, após um cortejo indígena de quatro dias, na igreja do Colégio de São Tiago, na ilha de Vitória, atual Palácio Anchieta, sede do governo estadual. Morreu reconhecido como modelo de santidade, foi aclamado Apóstolo do Brasil e, apesar das perseguições e tentativas de apropriação de sua imagem por governos totalitários, chegou à honra dos altares mais de 400 anos após sua morte, sendo canonizado pelo primeiro papa jesuíta e latino americano, o Papa Francisco, em 2014. Atualmente, o superior dos jesuítas do Espírito Santo permanece no Santuário Nacional de São José de Anchieta, do qual também é reitor.
Coube à igreja de São Maurício, no interior do Colégio de São Tiago, a honra de possuir o túmulo de São José de Anchieta. Pois nela eram sepultados os padres da Companhia que faleciam na capitania. Tinha 63 anos de idade e 46 como jesuíta, dos quais 44 anos foram dedicados ao Brasil.
P. Serafim Leite, descreve o grande número de pessoas que receberam o cortejo de Anchieta em Vitória
“onde o recebeu toda a terra, com as autoridades civis e eclesiásticas à frente. Aos ofícios solenes pregou Bartolomeu Simões Pereira, Administrador do Rio de Janeiro que o chamou Apóstolo do Brasil”
História da Companhia de Jesus, Pe. Serafim Leite, SJ
Ao passo que no município de Anchieta no Espírito Santo está o Santuário que recebe o título Nacional, dada a relevância do lugar para a vida e memória do Padroeiro do Brasil, o Palácio Anchieta, na cidade de Vitória, pode ser reconhecido como Memorial por ser parte indissociável da história daquele que recebeu, entre seus muros, o título de Apóstolo do Brasil
De Reritiba a Vitoria
A produção literária de São José de Anchieta é ampla e muito diversificada, revela um estilo sofisticado, audacioso e muito particular. Escreveu poemas, sermões, cartas históricas e peças teatrais muito elaboradas em quatro idiomas que dominava a fala e a escrita: português, espanhol, latim e tupi, sendo deste último o autor da gramática e o primeiro a introduzir a “língua dos brasis” nos mais elevados gêneros literários da época.
A grande capacidade literária e linguística chegou até os tempos atuais pelos escritos preservados ao longo dos séculos. Destes, dois de destaque aconteceram no Colégio de São Tiago: o sermão da assunção de Nossa Senhora, pregado na Ilha de Vitória em 1558 e o Auto de São Maurício ou Auto da Ilha de Vitória, escrito e encenado em português e castelhano, por ocasião da visita de autoridades espanholas. Entre as personagens do Auto estão: o Governo, que fala em português e propõe as qualidades do bom governo, e a ilha de Vitória, que figura como a personagem de uma nobre dama.
A embaixada, que veio ao Brasil buscar os Jesuítas para a Missão do Tucumã e do Paraguai, chegou à Capitania do Espírito Santo a 20 de agosto de 1586 e ficou até 4 de outubro, expressamente para passar as festas de São Maurício (22 de setembro). Ora uma das personagens do auto é o Embaixador do Paraguai. Aquela circunstância pode explicar esta personagem e fixar a data da representação. Outras personagens: a Vila de Vitória (capital do Espírito Santo), o Governo, São Maurício, Vitor, Amor e Temor de Deus a Ingratidão, etc. Em português e castelhano.” Quando havia hóspede espanhol, introduzia o castelhano nas apresentações.
P. Serafim Leite, SJ | História da Companhia de Jesus
Esse Auto tem três aspecto muito particulares para a obra de Anchieta:
A atual vice-governadora do Espírito Santo, Jaqueline Moraes, em setembro de 2019 assumiu pela primeira o governo e se tornou assim a primeira mulher a exercer o cargo de governadora desde Luísa Grimaldi. Mas até os dias atuais, o Espírito Santo ainda não teve uma governadora eleita. Luísa Grimaldi, a Capitoa como era chamada, assumiu o governo da Capitania do Espírito Santo após a morte de Vasco Fernandes Coutinho Filho, com quem foi casada. Diante das disputas, São José de Anchieta apoiou a legitimidade do governo de Luísa que teve de enfrentar tentativas de invasões holandesas e francesas na capitania, também mencionadas na peça.
Em entrevista ao jornal A Gazeta, na série especial sobre os 470 anos do Palácio Anchieta, o professor de língua e literatura latina Raimundo Carvalho fala sobre a habilidade literária de Anchieta na construção – e apresentação aos embaixadores da platéia – quais as práticas que um bom Governo deve ter. No diálogo dos personagens Lúcifer e Diabo, no início do Auto, e no Amor e Temor de Deus, na parte final, se encontram exemplos das ações injustas – como o cativeiro dos índios – e as justas – como a prática da justiça.
O bom governo é aquele que promove e, prioritariamente, pratica a justiça como principal virtude das instituições políticas e sociais. E essa escolha pela prioridade da justiça foi o que constitui a ilha de Vitória enquanto comunidade política, e assim, tal constituição deve ser devotamente conservada no tempo.
Raimundo Carvalho
O Auto da Ilha de Vitória ou Auto de São Maurício com essa temática, encenado no Colégio que depois viria a ser sede do Governo torna-o, particularmente, emblemático e de grande simbolismo. Além das “coincidências” temáticas está o evento histórico que mudou o uso e a posse do edifício: a expulsão dos jesuítas dos reinos de Portugal, outro evento político. Revisitar o Auto de ilha de Vitória nos 470 anos do Palácio Anchieta, durante o Ano Inaciano, é um convite desafiador para redescobrir o legado de São José de Anchieta para as práticas de justiça no nosso tempo.