Para comemorar os 430 anos do Auto da Assunção o Santuário Nacional de São José de Anchieta conversou com especialistas sobre a relevância da obra de São José de Anchieta. Como os aspectos teóricos e históricos podem nos ajudar a vislumbrar ainda mais a multiplicidade de dons que São José de Anchieta exerceu nestas terras. Em particular, dando forma, inclusive poética, para a beleza extraordinária contida na novidade do encontro e no exercício da sua missão e da nascente Companhia de Jesus.
O Auto da Assunção reúne música, cortejo, danças indígenas e portuguesas, caminha pela temática do encontro, e tem uma peculiaridade: foi todo ele redigido em língua Tupi. Mas a novidade do texto de Anchieta está apenas na utilização do Tupi em um gênero literário?
Quem nos responde a essa e outras perguntas é Raimundo Carvalho, poeta e professor doutor do departamento de Línguas e Letras da Universidade Federal do Espírito Santo. Pós-doutor, com experiência em Letras Clássicas, Raimundo atua principalmente no ensino de Latim e na tradução poética de poesia latina clássica.
Para o professor, “essa é uma operação por demais complexa para se restringir a elementos linguísticos. O que Anchieta faz é o que nós chamamos hoje de tradução cultural. Ele não só transpôs de uma língua para a outra a sua arte. Ele incorporou a língua e os valores culturais do outro em sua obra”.
São José de Anchieta é reconhecido por organizar uma gramática em Tupi. Mas, ao incluir a língua indígena em diversas produções artísticas e literárias, realiza também um grande evento histórico, social e político. “A língua tupi era a língua mais falada na nova terra. Anchieta, ao dotar essa língua de uma gramática descritiva e ao escrever poemas nela, junto com outros em espanhol, português e latim, dá ao tupi o status de língua de cultura”, explica Raimundo Carvalho.
A obra de Anchieta nos permite, ainda, tocar os traços da (quase) indizível novidade que viviam os povos naquele período das grandes navegações. Anchieta reuniu e escreveu em poesia os primeiros traços da formação da nossa nação, como a compreendemos hoje. “Sua obra flagra um momento decisivo de nossa constituição como povo e ela representa um esforço de diálogo entre culturas diversas que precisam se entender, para além da força bruta e do extermínio do outro”, conclui.
Nesse contexto está o Auto da Assunção. Escrito para a recepção da imagem de Nossa Senhora da Assunção e encenado no dia 15 de agosto de 1590 por ocasião da consagração da igreja, cuja construção começara exatamente, 11 anos antes, em 15 de agosto de 1579, quando o próprio Anchieta fundou a missão jesuíta em Reritiba. Será ainda nesse lugar que São José de Anchieta vai viver seus últimos anos e morrerá em 09 de junho 1597, na cela (quarto) anexo à igreja de Nossa Senhora da Assunção. Reconhecido como Patrimônio Cultural e Artístico, essa mesma igreja e a cela integram o conjunto arquitetônico do Santuário Nacional de São José de Anchieta, no município que leva seu nome, Anchieta, na região sul do estado do Espírito Santo, distante, apenas, 90 km da capital Vitória.
Igreja com as pedras originárias de 1590 quando da encenação do Auto da Assunção.
O grande mérito de Anchieta é que, além de ele ser o fundador da literatura e do teatro brasileiros, sua obra é fundamental para conhecermos um dos traços culturais de nossa formação. Sua obra flagra um momento decisivo de nossa constituição como povo e ela representa um esforço de diálogo entre culturas diversas que precisam se entender, para além da força bruta e do extermínio do outro. Anchieta se esforçou para conhecer a alma, os costumes e a língua dos nativos. É autor de uma gramática do tupi e escreveu poemas e autos nessa língua, legando-nos uma obra que é fundamental a todo aquele que deseja se inteirar de nossas raízes culturais.
Simples não é, mas Anchieta estava preparado para fazê-lo. Como um legítimo representante do ideal formativo da ordem dos Jesuítas, afamados, até hoje, pelo pendor intelectual de seus membros, Anchieta dominava o latim, o espanhol, o português e o tupi. O latim, não devemos nos esquecer, era a língua dos textos sagrados e da liturgia católica, o espanhol e o português eram línguas que os escritores da península ibérica usavam alternar em suas obras. O tupi, para Anchieta, é uma peça nova nessa engrenagem, necessária, tanto do ponto de vista prático da comunicação ordinária, quanto para se forjar uma obra que possa ser compreendida e toque diretamente o seu espectador.
Sim, mesmo escrevendo em línguas diversas, a fatura dos versos é sempre muito semelhante, a tal ponto que podemos dizer que sob o manto dessa diversidade linguística vigora o idioma comum da poesia.
Não. É claro que os autos de Anchieta são tributários dos autos escritos na península ibérica, mas o contexto colonial e a audiência indígena impõem a língua tupi como uma inovação. Essa é uma operação por demais complexa para se restringir a elementos linguísticos. O que Anchieta faz é o que nós chamamos hoje de tradução cultural. Ele não só transpôs de uma língua para a outra a sua arte. Ele incorporou a língua e os valores culturais do outro em sua obra. Ao fazer isso, ele acabou se tornando uma espécie de porta-voz, involuntário que seja, da cultura indígena.
Auto é um tipo peculiar de representação teatral muito vinculada a rituais religiosos. Os autos eram representados durante as festas religiosas nas portas das igrejas e os seus temas estavam ligados à vida dos santos ou a passagens bíblicas relativas à liturgia do calendário festivo da igreja. Ao lado desses ou como derivação desses, desenvolveu-se a forma profana (não religiosa) e literária dos autos encenados em praças públicas e nas cortes, cujo exemplo maior são os autos de Gil Vicente.
Anchieta era um espírito prático. Recebeu uma missão e buscou cumpri-la com eficiência e brilho. A língua tupi era a língua mais falada na nova terra. Anchieta, ao dotar essa língua de uma gramática descritiva e ao escrever poemas nela, junto com outros em espanhol, português e latim, dá ao tupi o status de língua de cultura. Não se trata de mero exotismo.
O fato em si está fundamentado na necessidade prática e também, quiçá, no ideal jesuítico de defesa da liberdade e da preservação dos povos indígenas, defendidas pelo Vaticano e pelas disposições dos monarcas, mas atropeladas na prática pela sanha escravista e genocida dos colonos, na linha de frente da empresa colonial, a tal ponto que, no momento posterior, ficou insustentável a presença dos jesuítas em solo brasileiro. Portanto, os poemas em tupi ficam como um momento literário de embate, não só da cultura indígena em confronto aos ideais cristãos, mas também da luta dos jesuítas contra as forças que perpetraram o genocídio dos povos ameríndios.
Sim, Anchieta precisa trabalhar muito concretamente com os dados da realidade cotidiana de sua plateia de índios. Digamos que Anchieta, ao aprender a língua tupi, aprendeu também a pensar como um tupi. Uma das características do pensamento selvagem é a concreção e a analogia. O pensamento analógico pensa concretamente, a partir da sua realidade e de seu cotidiano. Qualquer nível de abstração se dá sempre de forma comparativa com aquilo que está mais próximo e mais presente em sua vida. Observemos o transplante cultural de Anchieta ao traduzir o conceito abstrato de Deus, o nosso Deus único, pelo nome de Tupã, uma divindade do panteão tupi, ligada ao fenômeno natural do trovão. Nossa Senhora é representada como Tupansy, literalmente a Mãe de Tupã. O diabo é Anhangá, uma divindade maléfica. Igreja é tupã-oka, ou seja, a oca de Tupã.
O auto da Assunção testemunha o nascimento em território brasileiro de um catolicismo de forte conotação mariológica, que afetará muito positivamente a cultura que aqui se desenvolverá.
Eu diria que, com Anchieta e sua obra, o estado do Espírito Santo adquire uma grande importância histórica e, mesmo, uma dimensão mítica, muito concretamente representada também pela arquitetura das igrejas e conventos que até hoje se mantêm de pé, como testemunho do tempo em que esse território foi palmilhado por esse homem, cuja santidade foi, enfim, reconhecida.
Entrevistado
Foto: William Golino
Raimundo Carvalho – Possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1987), mestrado em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1993), doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1999) e Pós-doutorado pela Universidade de São Paulo. Atualmente é professor associado da Universidade Federal do Espírito Santo. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Letras Clássicas, atuando principalmente no ensino de Latim e na tradução poética de poesia latina clássica.